sábado, 26 de novembro de 2011

Por um novo marco regulatório do Provita

LUIS ANTONIO CÂMARA PEDROSA*

O Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas (Provita) foi criado a partir da Lei nº. 9.807, de 13 de julho de 1999. A regulamentação veio pelo Decreto nº. 3.518/00. Daí proliferam normas estaduais, que regulam a criação e o funcionamento dos diversos programas em 18 unidades federadas, onde o sistema nacional de proteção avança.
A experiência protetiva brasileira envolve entidades da sociedade civil – Ongs – como gestoras dos programas nos Estados. Elas constituem uma rede nacional de proteção. O esforço pela implementação do programa partiu delas, dentro das discussões travadas no Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), fundado em 1982, mas com uma trajetória histórica que remonta aos anos 60.
A proposta foi originariamente prevista no Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) de 1996, tal como recomendava a Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena (1993). O projeto do Programa foi apresentado e debatido na I Conferência Nacional de Direitos Humanos, promovida pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, com o apoio do Fórum das Comissões Legislativas de Direitos Humanos, Comissão de Direitos Humanos da OAB Federal, MNDH, CNBB, Fenaj, Inesc, Serpaj e Cimi.
Dois anos depois, um convênio possibilitaria a implementação da experiência pioneira no Estado de Pernambuco, por intermédio da Ong Gajop (Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares).
Razões históricas e políticas motivaram a participação das Ongs na construção do programa de proteção à testemunha brasileiro. Conforme as primeiras, motivadas pelo perfil do Estado brasileiro, violador de direitos humanos por excelência, com um sistema de segurança pública, profundamente enraizado nas doutrinas totalitárias de Estado. Pelas razões políticas, porque a democratização desse Estado significa a tarefa de democratizar a esfera pública não estatal, problematizando o acesso à justiça e às políticas públicas.
Portanto, defender o modelo de proteção brasileiro de muito se afasta da noção de privatização das políticas públicas, no melhor estilo neoliberal, muito embora o programa seja contemporâneo das reformas de Estado implementadas pelo Governo Fernando Henrique Cardoso. Tais reformas, sem dúvida, alteraram o marco legal da relação Estado/Sociedade Civil – vide Lei das Organizações Sociais (1998) e Lei das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (1999).
A lei das Oscips veio em socorro à legislação anterior, após inúmeras críticas das Ongs promotoras de direitos, que não compartilhavam da visão de Estado mínimo e, por isso mesmo, não tinham na sua missão institucional a substituição do Estado. Apesar do avanço, continuou a regular o acesso a fundos públicos uma legislação restritiva, e incompatível com o cotidiano de gestão das Ongs, a exemplo do Decreto nº. 6.170, de 25 de Julho de 2007 e a própria Lei de licitações (Lei nº. 8.666, de 21 de Junho de 1993).
O Decreto 6170 adveio de nova incidência das Ongs, que reclamavam de um outro (decreto 5504/2005), que obrigava as organizações a efetuarem pregão eletrônico, todas as vezes que fossem contratar bens ou serviços, dentro de um projeto financiado por recursos públicos federais. A partir daí, são vários os projetos de lei, em trâmite no Congresso Nacional, visando uma nova regulação.
O Decreto 6170/07 foi modificado pelo Governo Federal quatro vezes (Decretos 6.428/08, de 14.04.08; nº. 6.497/08, de 30.06.08; de nº. 6.619/08, de 29.10.08; e nº. 7.568/11, de 16.09.11). A principal novidade do Decreto, até então, foi a criação de um Sistema de Convênios, Repasses e Termos de Parceria (Siconv) aonde todos os procedimentos de seleção, repasse e prestação de contas devem acontecer. Tal como na lei das Oscips, o sistema impõe um cadastro prévio, para habilitação de projetos e apresentação de contrapartidas pelas executoras da sociedade civil.
Por mais de uma década a Abong (organização que reúne um conjunto expressivo de entidades envolvidas com a defesa de direitos e de desenvolvimento) amadurece o debate sobre o Marco Legal, propondo mudanças institucionais e normativas na relação das Ongs com o Estado Brasileiro.
Embora situado no segmento das Ongs, a gestão do Provita exige marco legal próprio dentro da especificidade de uma nova regulação Estado/Sociedade Civil.  Não por acaso, a última modificação do Decreto nº. 6170 (por intermédio do Decreto nº. 7.568/11) excepcionou da chamada pública os programas de proteção, mediante decisão fundamentada (art. 4º., § 2º., II).
Com efeito, em termos de controle social, não há precedentes, como no Provita. Um Fórum de Entidades Gestoras (Sociedade Civil), um Colégio de Presidentes de Conselho Deliberativo (Poder Público), uma Câmara Técnica (Poder Público e Sociedade Civil), além dos Conselhos Deliberativos Estaduais (Poder Público e Sociedade Civil). Do lado do Poder Público, via de regra, têm assento nos colegiados instituições como o Poder Judiciário, a Defensoria Pública, o Ministério Público e o Sistema de Segurança Pública).
Para mero efeito didático, podemos elencar os desafios para uma nova regulação dos programas de proteção no Brasil, considerando-se as especificidades das Ongs, que fazem a sua gestão, dentro do chamado Sistema Nacional de Proteção:
a) Estabelecer o marco regulatório da relação de trabalho dos profissionais da proteção, cuja atuação exige disponibilidade integral aos protegidos, assegurando o pagamento de encargos e direitos sociais nos repasses;
b) Estabelecer a continuidade do repasse dos recursos, de acordo com um novo modelo de acesso, tendo em vista que a política de proteção não deva sofrer solução de continuidade;
c) Criar um novo sistema de prestação de contas do repasse de recursos, equilibrando o sigilo das operações e a transparência na execução;
d) Articular o sistema de proteção com possibilidades de acesso às políticas públicas, preservando o sigilo da identidade e localização dos protegidos;
e) Assegurar a tramitação célere dos processos e procedimentos envolvendo pessoas protegidas;
f) Tornar obrigatória a criação de força pública específica para atuar na logística da proteção e escolta de pessoas protegidas;
g) Unificar o sistema de repasse dos recursos, criando percentuais obrigatórios de desembolso pelo Poder Público (Estados e Governo Federal), a partir de critérios objetivos;
h) Modificar a atual sistemática de mudança de nome e de identidade, de pessoas protegidas, de modo a possibilitar o equilíbrio entre sigilo, segurança e celeridade no procedimento, como possibilidade de acesso às políticas públicas e direitos pelas pessoas protegidas.
Portanto, os operadores do sistema de proteção, embora comunguem dos princípios da Abong (a que muitas gestoras do Provita são filiadas, diga-se de passagem) e apóiem a criação de um novo marco legal regulatório para a relação Estado/Sociedade Civil, no sentido de democratizar o acesso aos recursos públicos, destacam e enfatizam sua especificidade.
Com efeito, a proteção não pode se circunscrever aos limites de um convênio, cujo acesso se dê por uma concorrência de entidades – por mais apropriada que a mesma seja para outras finalidades conveniais – em que um preço do serviço seja o critério avalizador da escolha.
Do mesmo modo, o sistema de proteção brasileiro não encontra guarida na formalização atual dos convênios, onde a continuidade da proteção se mostra incompatível com a finalização ou a renovação dos ajustes, criando um espaço vazio de segurança, onde o Estado não se responsabiliza pelas despesas e nem pela vida das pessoas protegidas.
Incompatível também se mostra com o cotidiano das entidades que fazem a gestão do programa a instabilidade da carreira dos profissionais, de cujo treinamento e experiência dependem a proteção da integridade física e psíquica de um conjunto expressivo de pessoas protegidas.
Apesar de todas as dificuldades enfrentadas por tais entidades – que afirmam os direitos humanos como única possibilidade de construção da cidadania planetária – o programa de proteção à testemunha brasileiro constitui novidade, em termos de eficiência e em termos de capacidade de articulação de uma rede social em favor da inserção social de pessoas, sem os quais o processo criminal não alcançaria o seu objetivo.
Por último, afirmamos que entidades fazem a gestão do Provita assumem como tarefa, além do protagonismo do processo de democratização do Estado brasileiro – incluindo nele o desafio da conformação de relações mais igualitárias –, e ousam tocar nas mazelas estruturantes dessa desigualdade, tais como a impunidade, a seletividade criminal, a democratização da justiça e da segurança pública.
*Luis Antonio Câmara Pedrosa, é advogado da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH) e Coordenador Nacional do Monitoramento do Sistema Nacional de Proteção.
Artigo originalmente publicado na edição de novembro de 2011 do jornal Vias de Fato.

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