segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A VERDADE: por uma Comissão verdadeira


A VERDADE: por uma Comissão verdadeira

Paulo César Carbonari

Está em debate no Congresso Nacional a criação da Comissão Nacional da Verdade. O Projeto de Lei nº 7.376/2010 foi recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados e agora aguarda votação pelo Senado Federal. Prevista no terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), sua aprovação, por um lado, deve ser saudada como avanço; por outro, mostra a tendência de conciliação “por cima”, comum na história brasileira.

O texto do Projeto de Lei aprovado pela Câmara estabelece no artigo 1º que a Comissão Nacional da Verdade tem por finalidade “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias [leia-se de 1946 a 1985] a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”. Há aqui pelo menos dois problemas fundamentais: primeiro o período de apuração, que se dilui em mais de quatro décadas da história brasileira, podendo vir a desfocar o objetivo principal de sua proposição que é a apuração das violações do recente período ditatorial (de 1964 a 1985); segundo, ao estabelecer como expectativa final da Comissão a efetivação do direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional, substitui claramente a expectativa de que esta última passe pela necessária realização da justiça às vítimas como requisito e, ademais, mais do que reconciliação, está em questão o fortalecimento da democracia com direitos humanos, como finalidade última. Ao ajustar a finalidade da Comissão à reconciliação, a proposta fica a meio caminho do que eticamente se poderia dela esperar, mostrando nitidamente seu viés conciliatório e desconhecedor de que qualquer pactuação democrática só será possível com a necessária explicitação do conflito que a requer.

A proposta aprovada reitera a perspectiva ensejada pela posição do Supremo Tribunal Federal quando julgou a Lei da Anistia, o que fica patente pelo previsto no inciso V do artigo 3º: “colaborar com todas as instâncias do poder público para apuração de violação de direitos humanos, observadas as disposições das Leis nº 6.683, de 28 de agosto de 1979 [...]”. Com este texto, não caberia exatamente à Comissão a “apuração” das violações e sim colaborar para que “instâncias do poder público” a façam, podendo entrar em flagrante contradição com o previsto nos incisos I, II e III do mesmo artigo do Projeto de Lei. Advogar que a Comissão tenha poderes de apuração das violações não é sinônimo de querer que a Comissão seja tida e constituída em substituição aos tribunais convencionais. Ela teria que, ao menos, ter entre suas prerrogativas, mais do que “esclarecer (inciso I), “esclarecimento circunstanciado” (inciso II) e “identificar e tornar público” (inciso III), a obrigação de encaminhar suas conclusões que revelarem necessidade de responsabilização por violação de direitos humanos aos órgãos encarregados de persecuções criminais.    

O previsto no parágrafo 2°, do artigo 4º, que dispõe que “os dados, documentos e informações sigilosos fornecidos à Comissão Nacional da Verdade não poderão ser divulgados ou disponibilizados a terceiros, cabendo a seus membros resguardar seu sigilo”, somado ao que determina o artigo 5º: “as atividades desenvolvidas pela Comissão Nacional da Verdade serão públicas, exceto nos casos em que, a seu critério, a manutenção do sigilo seja relevante para o alcance de seus objetivos ou para resguardar a intimidade, vida privada, honra ou imagem de pessoas”, aparecem como limitadores fundamentais da necessária transparência da atuação e dos resultados da Comissão. A primeira previsão não tem qualquer sustentação, dado que, sem que seja possível à Comissão divulgar ou disponibilizar o que ela receber como insumo para a sustentar suas conclusões fica inviabilizado o contraditório, requisito absolutamente necessário ao estabelecimento da verdade e, de certa forma, vindo a impedir que os próprios “arquivos” da Comissão sejam abertos. No caso da segunda previsão, a publicidade da atuação da Comissão fica limitada a resguardar a intimidade, a vida privada, a honra ou imagem de pessoas, nos termos previstos no inciso X do artigo 5º da Constituição Federal, o que é necessário, porém, esta previsão parece estar em local inadequado da proposta de lei, visto que as conclusões a que vier é que estariam limitadas por este preceito constitucional, não são só suas atividades. Ou seja, as atividades, aquilo que a Comissão vier a fazer para cumprir suas prerrogativas, deveria ter ampla e irrestrita publicidade, até para que não seja manchada sua legitimidade. A publicidade, aliás é princípio constitucional para toda a atividade a ser feita por órgão público. Mais uma vez, a Comissão poderia ser transformada, não somente no que diz respeito aos documentos que acumular, mas no seu próprio agir, num “arquivo fechado”.

O que a proposta deveria prever, mas não prevê, é que os membros designados para compor a Comissão e aqueles que a ela comparecerem para prestar depoimentos ou informações, tenham garantia de imunidade civil e penal e a necessária proteção do Estado, caso venha a ser necessária, de sorte a, por um lado, animar a colaboração com os trabalhos da Comissão e, por outro, a não ensejar que vítimas e testemunhas venham a ser atacadas, mais uma vez, por seus algozes, abrindo espaço para que a desejada “reconciliação” seja posta abaixo pelos que não a querem pelo simples fato de serem contra a qualquer tipo de apuração das violações aos direitos humanos.

O previsto no inciso VI do mesmo artigo 4º: “requisitar proteção aos órgãos públicos para qualquer pessoa que se encontre em situação de ameaça, em razão de sua colaboração com a Comissão Nacional da Verdade” é insuficiente ante o que se espera da Comissão, por estar suscetível à resposta dos órgãos públicos, sem que lhe seja prevista qualquer punição caso não venham a atender ao que a Comissão solicitar. Por mais que o previsto no § 1º diga que esta requisição deva ser feita diretamente a órgão público, o fato de haver prerrogativa de requisição e de que esta seja feita a órgão público, afasta que seja feita a órgão privado [o que pode ser limitativo, pois há muitas informações que estão em posse de indivíduos ou até organizações privadas], mas não a torna uma medida a ser necessariamente atendida pelo órgão público. Assim disposto, dá-se por automático que o atendimento da requisição seja feito pelo órgão público, até porque o Projeto de Lei não prevê qualquer tipo de punição ao órgão público que vier a se negar a garantir o atendimento a tal requisição. 

As breves observações que apresentamos têm seu núcleo central na compreensão de que a verdade exige que se faça profundo reconhecimento das vítimas e de seus algozes como requisito para que seja orientada pela justiça ética e não pela preservação da ordem que, de regra, é conveniente aos opressores mais que aos oprimidos. Verdade e memória são gritos de justiça clamado pelas e para as vítimas. Elas têm o direito de dizer sua palavra e de exigir que a justiça não lhes seja negada. Negar-lhes a justiça equivaleria a uma sobre-vitimá-las, a não somente deixar de reconhece-las, como também reforçar sua condição de vitimização. Querer este direito das vítimas não é querer um direito corporativo, pelo contrário, é querer um direito universal, nem que seja para que não sejam produzidas novas vítimas. Por isso é que exigir o direito à memória, à verdade e à justiça como um direito humano é, acima de tudo, um grito pelo “nunca mais” e a afirmação de que queremos um mundo no qual a justiça não seja promessa e que os direitos humanos não sejam quimera.

Ainda há tempo para que necessárias revisões ao texto do Projeto de Lei sejam feitas. Mas, elas somente serão feitas se a sociedade reagir a todo tipo de acordo que não seja para viabilizar a justiça às vítimas e para que a Comissão da Verdade venha a ser um profícuo instrumento para tal.

É o que nos resta como cidadãos que, em nome dos direitos humanos, não se conformam em tergiversar ou em pactuar com qualquer tipo de violação e mesmo com qualquer medida que não seja para que todos os direitos humanos sejam, além de garantidos, realizados na vida concreta de todos/as e de cada uma das pessoas.

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Doutorando em filosofia (Unisinos), professor de filosofia no Instituto Berthier (IFIBE, Passo Fundo) e conselheiro nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH)

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