terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Daerle. Vítima de todos nós.

Daerle. Hoje, esse foi o primeiro nome que escutei no dia. E logo no primeiro nome, o primeiro aperto no coração.

Logo cedo, ao chegar no CCN/MA, ainda dentro do carro, fui abordado por Daerle. Pediu um pouco de café. De forma até um pouco ríspida, falei: “- ô papai, não tenho dinheiro aqui agora...” De imediato fui corrigido por Daerle: “Sou menina.” Pobre menina. Minha confusão com o sexo dela é, até certo ponto, compreensível. Corpo esguio, cabelo raspado, suja. Em momento algum Daerle parece ser uma menina prestes a entrar na adolescência. Insistiu no pedido do café, pois ainda não tinha se alimentado.  Antes de descer do carro, ela passou a mão na minha cabeça e disse: “Tio, você é tão bonito!”. Pena não poder dizer o mesmo de Daerle naquele momento, haja vista o estado degradante no qual se encontrava.

Desci do carro para saber um pouco mais sobre a vida daquela garota. Perguntei pela mãe. “Ela vive roubando. Prefiro pedir a roubar, tio.” Fiquei sem palavras, olhando para os olhos desesperançosos de Daerle. Após uma pausa, perguntei se estava na escola: "Não, tio. Eu não tenho documento para tá na escola". A última pergunta pareceu meio idiota, mas a fiz assim mesmo: "E seus tios, parentes, não tem?" A resposta foi um ríspido "não", com um inocente olhar para o asfalto. Continuou, afirmando que já tinha sido atendida por projetos da entidade.

Ao descer do carro, ela quis apertar a minha mão. Num gesto impensado de repulsa, recuei. Logo após pensei comigo: "Porque fiz isso?", questionava, como defensor de direitos humanos. Para tentar me redimir da burrada, coloquei a mão no seu ombro e convidei-a para ver se era possível tomar um café no CCN.

Enquanto Daerle se distraia com os jornais, questionei à coordenadora pedagógica do Projeto Sonho dos Erês se a entidade tinha conhecimento do caso dela, ao que me foi respondido que sim. Relatou-me a coordenadora que a menima Daerle já tinha sido atendida pelo referido projeto, mas que, infelizmente, não foi capaz de resgatá-la do sub-mundo das drogas, tendo em vista que ela, quando ingressou no projeto, já era usuária de drogas ilícitas. Crack, Merla, cola de sapateiro, ... Daerle não fazia distinção entre nenhuma delas para manter seu vício.

Fui informado ainda sobre a vida de Daerle. Estrupada aos 8 anos pelo padastro. A mãe, vai e volta, é levada para a penitenciária e delegacias em virtude de pequenos furtos para sustentar seu vício. Quando a mãe está detida, Daerle não volta para casa. Vive e dorme na feira do João Paulo. Segundo comentou com a coordenadora pedagógica do CCN, o padastro faz "saliência" e "mexe" com ela. O coração, mais uma vez, apertou.

O CCN, por diversas vezes, acionou o Conselho Tutelar da região. Em algumas ocasiões, a menina Daerle foi internada numa clínica para tratamento de dependentes químicos. Por falta de estrutura da clínica e de uma base familiar sólida, fugia constantemente, voltando para as ruas e para o vício das drogas.

Indignado com a situação de Daerle, entrei em contato com a promotoria da infância e da adolescência de São Luis, para as providências cabíveis. Tenho ciência que, mesmo encaminhado e realizado todo o procedimento adequado para atendimento de Daerle, muitas outras meninas e meninos continuarão dormindo nas feiras e ruas de São Luís, sujeitas à exploração sexual, à utilização de mão de obra infantil, e às drogas, caso não haja uma política pública incisiva de enfrentamento a essa questão.

A atitude de recuo que tive com Daerle demonstra o preconceito que achamos não ter. Por essas e outras, o processo formativo e de sensibilização de todos nós deve ser permanente.

Que Deus proteja Daerle, pois aos olhos do Estado e da sociedade, ela está suja, abandonada, drogada, violentada, invisível.

5 comentários:

  1. Excelente post Igor. É bom relembrar este estado de invisibilidade, para evitar que outras Daerles venham. E vão. O que é pior, sem serem notadas.

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  2. O comentário da Cecília resume questão, que é a invisibilidade a que estão submetidas algumas pessoas. Me vem à mente algo que assisti, não me lembro bem quando, sobre essa invisibilidade, que atingia um gari duma grande cidade. Tudo muito triste. O seu post contribui para que fiquemos alertas. Sempre.

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  3. Em um estado que não ver a educação como caminho a tendencia é ver gerações inteiras perdidas, perdidas pela falta de oportunidades...

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  4. Uma reflexão dessas, nos ajuda a perceber que fechamos os olhos para uma realidade, que consciente ou inconscientemente nos afastamos sem qualquer questionamento.

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  5. Cara, esse post é uma porrada em qualquer arrogância social e desleixo humano; no egoísmo no qual estão vivemos quase que diariamente.

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