Escrevi este texto em setembro de 2000, três anos e meio depois da venda da Vale. Reproduzo-o como um sinal de época. Com o esclarecimento de que as mineradoras concorrentes da ex-estatal brasileira acabaram não conseguindo penetrar na sua estrutura societária, conforme então se temia. Mas encontrou seu lugar, que legalmente não lhe devia caber, uma grande compradora estrangeira de minério de ferro, a japonesa Mitsui. Ela era então a maior de todas.
Para quem mesmo foi vendida a Companhia Vale do Rio Doce, a maior produtora de minério de ferro do mundo e uma das mais importantes estatais do Brasil? Quem é que detém realmente o controle acionário da empresa? Para quem ele irá quando os nós, dados intencionalmente para bloquear o acesso pelo fio da meada, forem desatados? Quais as consequências desse esquema para o controle e o usufruto nacional sobre algumas das mais estratégicas jazidas de minérios do país?
Mais de três anos depois da privatização da CVRD, só agora essas perguntas começam a ser respondidas. Esclarecê-las, porém, deixou de ser uma questão acadêmica ou um item de disputa política: é uma tarefa prática, da qual se estão desincumbindo a justiça e o ministério público federal no Pará.
A partir da revisão dos dados de 85 ações populares, que foram drenadas de várias partes do Brasil, por vinculação, para a 4ª vara federal de Belém, e de um inquérito civil público proposto pelo procurador Ubiratan Cazetta, o processo de desestatização da CVRD pode ser finalmente reexaminado, sustado e, conforme a instrução das demandas, desfeito.
Tudo vai depender agora dos dados que serão fornecidos ao ministério público a partir da quebra dos sigilos bancário, fiscal, comercial e acionário das 16 pessoas jurídicas e físicas envolvidas na venda da Vale, medida determinada pelo juiz substituto da 4ª vara, Eduardo Cubas. O prazo para a entrega dessas informações terminaria no dia 27 de setembro (esta matéria foi fechada três dias antes). Enquanto essa pendência não for definida, o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico Social está proibido pelo magistrado de financiar qualquer operação financeira em favor dessas entidades.
Os dados contidos em milhares de páginas dos autos sugerem que por trás do aparecimento inesperado do Consórcio Brasil, formado às pressas para impedir que o grupo liderado pelo empresário paulista Antônio Ermírio de Moraes arrematasse a mais cobiçada empresa do setor mineral, havia um ardil. Uma instituição financeira recente, o grupo Opportunity, e um empresário sem maior destaque até então, Benjamin Steinbruch, receberam maciça injeção de dinheiro, que não tinham, para poder bancar o lance vencedor do leilão, de 3,3 bilhões de dólares.
Alcançado o objetivo, a nova direção da Vale tratou de arrancar o máximo possível de rendimento da operação da empresa, acumulando lucros recordistas, distribuídos em dividendos de valor sem paralelo até então. A capitalização serviria para a devolução do dinheiro emprestado, com uma “taxa de participação” estupenda.
A partir daí, o cenário estaria pronto para que, num processo semelhante ao da queda em série, o tal do “efeito dominó”, os verdadeiros donos, na ponta invisível do cordão, até então manejado nos bastidores, começassem a aparecer. Os supostos astros de hoje não passariam, na verdade, de “doublés”.
O lance mais explícito desse desnudamento envolve o Bradesco. Valendo-se de sucessivas conexões societárias, o líder do sistema financeiro privado nacional atuou nos dois extremos do enredo da privatização. De um lado, integrou o consórcio liderado pela estrangeira Merryl Linch e por Ernest Young e KPMG, contratados pela Vale para modelar a sua venda e avaliar o seu valor. Do outro lado, estava por trás de um dos associados que arrematou a ex-estatal.
Apesar de tortuoso, o nexo causal já está bem claro nos documentos juntados aos autos. O próprio Bradesco assumiu publicamente, em março deste ano, sua participação na Vale (de 7,5% do capital votante e 4,8% do capital total). Também já desmoronou o argumento de que o Bradesco apenas praticou um ato negocial regular quando fez um empréstimo para o responsável pela aquisição. Falta ainda sepultar de vez o outro elemento de defesa: que a transação se consumou depois do período em que a lei a vedava. Os indícios são de que ocorreu antes.
Mas esse é apenas um dos elementos da trama, embora o que pode anulá-la. Tudo indica que fundos de ações foram apenas testas de ferro ou “laranjas” para empresas estrangeiras, especificamente para mineradoras concorrentes diretas ou laterais da CVRD no cenário mundial, independentemente de relações de sociedade no plano nacional (como Anglo American e Billiton).
Elas aparecerão quando for consumada uma já acertada operação de “descruzamento” de ações, concebida para separar gatos pardos dos pretos no mercado (consolidando o setor siderúrgico e apartando dele o minerador). Só que o ministério público e a justiça federal parecem dispostos a não permitir que essa complicada manobra de engenharia financeira, com suas complexas razões sociais, se realize abocanhando mais dinheiro público – no caso, financiamento também já acordado do BNDES, no valor de 300 milhões de reais.
As fraudes na venda da Vale foram realizadas a princípio através de uma feroz especulação com papéis pelos intermediários, e, agora, com a assunção dos verdadeiros donos, o Bradesco do lado nacional. E, quem sabe, por mineradoras estrangeiras que ainda não concluíram seus estratagemas. Com a definição da estrutura acionária, seu desnudamento mostrará de vez que o Brasil fez um péssimo negócio ao leiloar – e vender como vendeu – a CVRD. Caberá à justiça, agora, decidir se esse dano é ou não reversível. Se o plano foi perfeito ou se, como todo crime, deixou pistas para ser desfeito.
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