Tiago Tozzi
Defensor Público do Estado do Ceará - Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas
O processo histórico pode ser analisado sob diversos enfoques. Da simples cronologia ao modo de produção, muitos critérios já foram adotados como balizas a parametrizar as sociedades ao longo dos tempos. Critério pouco usual traduz-se no grau de efetividade dos direitos assegurados aos cidadãos. Nessa perspectiva, tão mais desenvolvidas considerar-se-iam as sociedades quanto mais efetivos fossem direitos legalmente proclamados.
No Brasil, não há linearidade na evolução desse indicador. Com efeito, o simples passar do tempo não garante o crescimento da capacidade do Estado em assegurar a afirmação de direitos fundamentais inerentes à cidadania. O processo não se dá sem retrocessos, sobretudo ante a complexidade da questão social brasileira, associada ao modelo de sistema de justiça adotado pela ordem constitucional. Sem falar nos períodos de crise ou exceção institucionais, além da consabida ausência de vontade política.
Notadamente após a promulgação da Constituição Federal de 1988, que, por si só, já consagra um extenso repertório de direitos fundamentais, o trabalho legislativo tem se encarregado de uma significativa produção de novos direitos, sem que alguns dos mais elementares tenham sido efetivamente implementados.
Nessa perspectiva, a simples aclamação retórica de direitos em incontáveis estatutos jurídicos tem-se mostrado ineficaz no sentido de efetuar as promessas constitucionais de bem estar social. Optamos por um modelo de Estado Democrático de Direito em que o adimplemento dos valores democráticos nos quais se funda a ordem constitucional se instrumentaliza através das instituições.
Nos últimos anos, a Defensoria Pública tem crescido em importância, na medida em que tem sido reinventada a sua conformação orgânico-institucional. Forjada para proporcionar assistência jurídica aos despossuídos, a Defensoria passou por um processo de ressignificação institucional e hoje ostenta um grande mosaico de atribuições. O seu escopo de atuação não se encontra adstrito apenas a pessoas, mas a alguns dos valores mais fundantes do nosso Estado Democrático de Direito, como a promoção do acesso à justiça, a defesa dos direitos fundamentais de processo corolários da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal, a prevalência dos direitos humanos, a promoção da igualdade material, a defesa de grupos sociais hipossuficientes ou subrepresentados juridicamente, a defesa da pessoa em situação de vulnerabilidade, a primazia da dignidade da pessoa humana, a defesa da cidadania plena, a solução extrajudicial de conflitos e a promoção da paz social.
A Defensoria vem se afirmando no sistema de justiça como instrumento de transformação social, com vocação natural para apresentar-se como contrapeso tendente ao equilíbrio das forças que operam o jogo democrático. Ao institucionalizar a voz dos hipossuficientes em sentido amplo (econômico, social, jurídico, organizacional), e ao vocalizar as reivindicações dos esquecidos, desempenha papel relevante, não raro incompreendido, especialmente ante uma cultura jurídica alicerçada na preponderância da força do Estado-acusação, do Estado-administração e dos detentores do poder econômico. Além disso, enfrenta a reação de setores que entendem que o cumprimento da Constituição e a efetividade dos fundamentos republicanos da prevalência dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana encontram-se sujeitos a reserva de mercado.
O acesso à justiça, sob pena de ver-se frustrado um dos mais elementares direitos humanos, não pode condicionar-se a caprichos, omissões, censuras, boicotes ou negligências de qualquer natureza. Sobeja em importância, na medida em que se traduz em direito fundamental em si mesmo, além de veículo conducente à garantia de outros direitos fundamentais. É, portanto, simultaneamente, direito de fundo e instrumental. Sem ele, o cidadão fica à mercê da discricionariedade do governante de turno, senão do favor, como se senhor fosse o mandatário, não o mandante, numa cruel inversão da lógica democrático-republicana.
Incrivelmente, após 24 anos de vigência da Constituição (“Cidadã”) de 1988, a Defensoria Pública ainda luta pelo direito de existir. São milhares, todavia, os municípios sem Defensor Público. Espera-se que, assim como ocorre a muitos cidadãos (que nascem e morrem sem direito sequer a um simples registro de nascimento - e que, não por acaso, consubstanciam justamente o público-alvo da instituição), a Defensoria não seja condenada à sub ou mesmo à inexistência, antes mesmo de ter tido a oportunidade de se constituir plenamente, esvaindo consigo sonhos que, para muitos brasileiros, nem chegarão a ser sonhados: o sonho de uma ordem social efetivamente justa e solidária. O sonho da cidadania plena, da inclusão, da igualdade. O sonho de existir e viver uma vida que valha a pena ser vivida.
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