Após cerca de nove anos, Rafael da Silva provou ter sido vítima de erro do sistema criminal e teve sua inocência reconhecida no último dia 31 de julho. Ele foi condenado, em 2003, por porte ilegal de arma, após o verdadeiro culpado ter utilizado documentos falsos em seus nome. Durante esse período, chegou a cumprir integralmente sua pena em regime aberto.
Sua absolvição foi determinada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, após a Defensoria Pública interpor um recurso de revisão criminal em seu favor.
O caso
Em janeiro de 2001, uma pessoa foi presa em flagrante por policiais militares pelo delito de porte ilegal de arma, na Rodovia dos Imigrantes. O caso foi registrado no 97º Distrito Policial da Capital. O acusado identificou-se como Rafael da Silva — e apresentou documentos falsos, contendo sua foto. O verdadeiro Rafael havia perdido seu RG alguns anos antes.
Os policiais não perceberam a falsidade da identificação e não chegaram a colher as impressões digitais do indivíduo preso. O “falso Rafael” foi solto posteriormente, após obter liberdade sob fiança. E o inquérito continuou a tramitar, sob o nome do verdadeiro Rafael.
Em fevereiro de 2003, o verdadeiro Rafael descobriu que respondia a uma processo criminal, quando já estava condenado em primeira instância. Desde então, tentava comprovar sua inocência: como os policiais não colheram as impressões digitais da pessoa presa em flagrante, a Justiça não aceitava retirar seu nome do processo. Exames grafotécnicos também se revelaram inconclusivos, porque a pessoa presa não havia deixado mais do que algumas rubricas. Em 2005, Rafael foi condenado em segunda instância a uma pena privativa de liberdade em regime aberto.
Em 2008, a Defensoria interpôs em favor de Rafael um recurso de revisão criminal, previsto pela lei para afastar condenações injustas. Em 2009, aconteceu uma nova audiência judicial, na qual o policial militar que efetuou a prisão disse que o verdadeiro Rafael era inocente. Outras testemunhas confirmaram que ele nunca havia sido preso. Foi também a primeira vez que Rafael foi ouvido pela Justiça e pôde se explicar.
Encaminhado ao TJ-SP em 2009, o recurso foi julgado em 31 de julho de 2012. Por unanimidade, três desembargadores confirmaram que “a prova é robusta para autorizar a conclusão de que o requerente é parte ilegítima para figurar no pólo passivo da ação penal”. Eles determinaram também que todos os registros criminais em nome de Rafael sejam anulados.
Depoimento
No último sábado (22/9), o jornal Folha de S.Paulo publicou um depoimento de Rafael sobre sua história. Leia a íntegra do depoimento:
“Quando tinha 17 anos perdi meu documento de identidade e fui até uma delegacia registrar o B.O. Chegando lá, o delegado estava assistindo ao jogo do Corinthians e disse para eu ir para casa porque ele tinha mais o que fazer.
Eu era moleque e fiz o que ele mandou. Tirei a segunda via e ficou por isso mesmo. Só fiquei sabendo do problema quando arrumei meu primeiro emprego. Quando viram que eu tinha uma condenação me demitiram.
Achei estranho e fui buscar o que era a condenação. Foi então que descobri que quem achou meu documento fez uma falsificação dele. O "cara" tirou minha foto do RG e pôs a dele. Um tempo depois, esse homem foi preso em flagrante e condenado por porte de arma.
Desde que descobri isso, em 2003, minha vida tem sido um martírio. Fui demitido de dez empregos e reprovado em dez entrevistas. O motivo era porque era condenado.
Apanhei várias vezes da polícia. Uma vez a PM me quebrou todo porque eu não podia ficar depois das 22h na rua. Na outra, levei um tapa na cara dentro da empresa de digitação que eu trabalhava. O dono da empresa chamou um amigo dele que era policial. Esse policial me bateu e disse na frente de todo mundo: "Levanta, ladrão".
Minha vida virou um inferno. Entrei com todos os recursos judiciais possíveis. Perdia sempre. Ninguém queria entender que o cara que foi preso era branco e eu sou moreno. Ele tinha o nariz mais fino que o meu e era mais alto. No B.O tinha esses detalhes. O problema é que o delegado que fez o flagrante não pegou as digitais do bandido.
Tive de cumprir a condenação em regime aberto. Me apresentava todos os meses no fórum. Foram quase dez anos. Se tivessem me prendido, teria menos prejuízo.
Imagina o que é no começo de sua vida profissional você receber tantas portas na cara? Sem emprego, fui abandonado pela minha mulher, vi minha filha passar fome, mas resisti. Poderia ser preso por outras razões. Fui chamado para entrar no mundo do crime, e não entrei.
Nesses tempo, entrei em depressão, tive problemas de saúde e não consegui terminar a faculdade de filosofia. O pior de tudo era vergonha da miséria moral. Não conseguia sustentar minha família.
A reviravolta na minha vida foi depois que a Defensoria Pública me ajudou com um último recurso judicial.
Em julho, o Tribunal de Justiça anulou o processo que me condenou. Para a Justiça me absolver, o defensor levou na audiência o PM que prendeu o falso Rafael, o advogado dele, a mulher que era a namorada desse bandido na época e o pai dela. Todos disseram que eu não era aquela pessoa que havia sido presa.
Nem assim, a promotora acreditou. Ela me disse que eu não tinha motivo para chorar porque a indenização que receberia já compensaria esses anos perdidos. Eu pensei comigo: "Quer trocar de vida comigo? Eu viro promotor e você, desempregada".
Hoje, sou segurança em duas empresas. Para compensar o tempo perdido, trabalho dobrado. Cumpri a pena que não era minha e meu nome saiu, finalmente, do registro da polícia.
Agora, vou levantar a cabeça. Não tenho mais dom para ser vítima.” Com informações da Assessoria de Imprensa da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 25 de setembro de 2012
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