quinta-feira, 7 de março de 2013

Carvão a ferro e fogo - Artigo da NatGeo


O legado da siderurgia na Amazônia envolve madeira da floresta convertida em carvão e trabalho degradante. Mas já há quem se esforce por práticas mais sustentáveis
EDIÇÃO 155/FEVEREIRO DE 201318/02/2013

por Thiago Medaglia Fonte: NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL

Viajo por uma das decadentes rodovias da Amazônia. Estamos a caminho de uma carvoaria no município paraense de Jacundá. À frente do carro onde estou, duas picapes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), órgão federal de fiscalização. Pela PA-150, que liga Marabá a Belém, a urgência dos líderes do comboio causa a sensação de se correr um rali. Quase não dá tempo de ler a placa no quintal de uma casa simples: “Vende-se carvão”. É para churrasco.
Horas depois de ter partido de Marabá, maior cidade da região, entramos por uma estrada de terra. Leva 30 minutos até avistar outra placa: “Obrigatório o uso de Ipeis”. Embora a mensagem seja relevante, o certo é EPIs, sigla para Equipamento de Proteção Individual, nome do kit (calça, bota, camisa de manga comprida, capacete e óculos) para manuseio de produtos perigosos.
Os fornos de carvão, espalhados pelo chão de terra seca e com formato semelhante a iglus de esquimó, dão uma aparência medieval à carvoaria. Homens sujos e sem camisa nos fitam curiosos.
Os fiscais do Ibama descem apressados dos carros e abordam sujeitos que descarregam a madeira acomodada em uma caminhonete. É quando o agente Roberto José Scarpari aponta: “Uma castanheira”. Na nossa frente, em vez do tronco robusto da árvore frondosa alçada ao céu, só um resto de tora jogada na carroceria do velho caminhão. A única semelhança com as exuberantes castanheiras da floresta em pé é a companhia de outros tipos de árvore a seu lado. Todas agora prestes a serem carbonizadas.
Depois de transformadas em carvão, elas servirão de combustível para as usinas locais na produção de ferro fundido. O carvão vegetal é a base do parque siderúrgico no norte do Brasil, concentrado entre o sudeste do Pará e o oeste do Maranhão, e responsável por 1 bilhão de dólares em exportações em 2011. Chamado de polo Carajás, ele é abastecido em mais da metade de sua demanda por madeira nativa retirada da floresta. A prática do carvoejamento e o comércio com as siderúrgicas não são ilegais – a questão determinante é a origem da madeira.
O caso das castanheiras é emblemático. Protegidas por um decreto de lei federal de 1994, que proíbe seu corte, elas não poderiam ser alvo de madeireiros e carvoeiros. Só que a legislação nem sempre é cumprida. “Em uma única ação”, avisa Scarpari, “topei com 50 delas empilhadas.” Ao longo dos anos, os estoques dessa árvore do sudeste paraense foram vitimados por pastagens, assentamentos, expansão urbana e mineração.
Mas entender a relação entre a madeira e o aço exige antes um olhar para a história da exploração do subsolo local. Principal província mineral do planeta, a Amazônia abriga o maior depósito de minério de ferro do mundo: a mina de Carajás, operada desde a década de 1980 pela estatal Companhia Vale do Rio Doce – há 15 anos uma empresa privada chamada Vale.
A presença abundante de minério estimulou a criação de um parque industrial siderúrgico ainda durante a ditadura militar. Nesse mesmo período, impulsionadas por benefícios fiscais, usinas foram instaladas em duas localidades: Marabá, no Pará, e Açailândia, no Maranhão. Para escoar a produção, foi construída a estrada de ferro Carajás, com 892 quilômetros de extensão, que liga o distrito de Carajás, no município de Parauapebas, ao terminal marítimo de Ponta da Madeira, próximo ao porto do Itaqui, em São Luís.
Idealizado em um período no qual o projeto político contemplava incentivos ao desmatamento, o polo nasceu com fome de madeira. “No rastro da expansão da siderurgia, consolidou-se um mercado de carvão, feito por pequenos produtores, pulverizado entre milhares de pequenos fornecedores”, explica o jornalista Leonardo Sakamoto, um dos primeiros a denunciar a situação.
Pior: havia informação. Em 1987, um estudo da Vale do Rio Doce assinado pelo geógrafo Azis Ab’Saber alertava para o fato de que, “na ótica dos empresários siderúrgicos, tudo é computável no balanço das viabilidades, menos os custos ambientais ou os impactos sociais negativos”.
O carvão é a fonte de energia mais utilizada pelo homem. E não se trata somente de uma área específica como a da siderurgia. Quase a metade do mundo depende de sua queima para não ficar sem luz. Em boa parte da Europa e da Ásia, o carvão de origem mineral é utilizado na produção de energia elétrica. Isso porque ele é o combustível fóssil mais abundante no planeta – bem mais que o petróleo e o gás natural. Sua origem remonta a milhões de anos, quando gigantescas árvores pré-históricas foram encobertas por lava vulcânica. Depositada ao longo das eras, a matéria orgânica soterrada deu origem às jazidas de carvão aproveitadas no período industrial.
No Brasil, onde as reservas conhecidas de carvão mineral são escassas, preponderam outras matrizes energéticas. Em torno de 70% da eletricidade consumida no país vem de usinas hidrelétricas, nas quais a irradiação de gases de efeito estufa é bem menor. Já na siderurgia, embora algumas usinas nacionais importem carvão mineral, é bastante disseminado o uso de carvão vegetal, do qual somos o maior produtor no mundo (foram 7,4 milhões de toneladas em 2010, 85% delas destinadas ao setor siderúrgico). “Em vez de soterrar as árvores e esperar milhões de anos pela conversão, a madeira é aquecida e transformada em carvão”, sintetiza o engenheiro florestal José Otávio Brito, do Departamento de Ciências Florestais da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo.
Nos altos-fornos siderúrgicos, além de fornecer calor, o carvão cumpre o papel de redutor químico, em uma reação em que o carbono contido em suas moléculas é fixado no minério de ferro. O resultado imediato dessa primeira fusão é o ferro-gusa, com base no qual podem ser obtidos o aço e ainda uma série de ferroligas, com diversas destinações na indústria, que varia conforme o elemento adicionado ao ferro (manganês, silício, cromo). À exceção de uma empresa, todas as usinas do polo Carajás contemplam apenas a fabricação de lingotes de ferro-gusa – daí serem chamadas de “guseiras”.
A siderurgia brasileira é competitiva. Encontra- se aqui o maior parque industrial de aço da América do Sul, e uma das dez maiores produções do mundo. Entre as usinas integradas, ou aciarias (aquelas que incorporam a fabricação de aço), o afluxo de capital foi significativo na década de 1990 em função das privatizações. Há siderúrgicas desse tipo em pelo menos nove estados brasileiros, todas comandadas por grandes grupos econômicos. Nos últimos anos, sua produção é marcada por iniciativas que visam minimizar o alto impacto da atividade, tais como programas de conservação de energia, recirculação de água e reciclagem do aço.
Já o grupo composto pelas guseiras se divide em dois polos. Um deles é o Carajás, o maior exportador do gusa nacional, vendido sobretudo aos Estados Unidos. O outro se concentra em Minas Gerais (com usinas no Espírito Santo e no Mato Grosso do Sul), e abastece as aciarias do Sudeste. As guseiras consomem mais carvão vegetal que as aciarias; por isso, é comum terem seus nomes ligados a denúncias de desmatamento.
O aço representa 90% dos metais consumidos pela população mundial: peças automotivas, turbinas de avião a jato, lavadoras domésticas, secadores de cabelo, instrumentos médicos, celulares, maquinário utilizado na produção de alimentos, cortadores de unha, elevadores, construção civil. Sua importância é comparável à do petróleo.
Favorecidos pelas jazidas de minério de ferro, outro componente-chave, Rússia, Brasil e Ucrânia são os maiores exportadores mundiais de ferro-gusa. No Leste Europeu, a siderurgia é baseada no coque metalúrgico, derivado do carvão mineral. Seu poder calorífico é maior que o do carvão vegetal; no entanto, a lista de restrições a seu uso, também. Degradação do solo e de corpos d’água nas áreas de extração, doenças respiratórias, acidentes com mineiros, além de chuva ácida e cinza tóxica, estão entre as motivações contrárias à escolha do coque.
A princípio, a opção brasileira pelo carvão vegetal é uma vantagem. O plantio de árvores, por exemplo, pode compensar a emissão dos gases de efeito estufa. Acontece que, em Carajás, a devastação da natureza e o impacto social colocam essa distinção em cheque. O caminho para tornar a siderurgia sustentável no polo passa pelo cumprimento da legislação trabalhista e por investimentos em florestas plantadas de eucalipto, apesar “dos danos que a monocultura em larga escala dessa planta pode gerar aos recursos hídricos”, ressalta Leonardo Sakamoto. É a alternativa viável para um lugar já degradado.
Até 2004, ano da publicação do primeiro estudo de mapeamento da cadeia produtiva do aço na Amazônia, a opinião pública pouco sabia do cenário em Marabá e Açailândia. Intitulada “Escravos do Aço”, a pesquisa identificou as siderúrgicas do polo Carajás como financiadoras de carvoarias que usavam trabalhadores escravos na produção de carvão. De acordo com o relatório, empresas ligadas a grupos como Queiroz Galvão e Gerdau se beneficiaram da escravidão para fabricar gusa. A Vale e a mais importante companhia de aço dos Estados Unidos, a Nucor Corporation (também a maior compradora do gusa amazônico até hoje), mantinham relações comerciais com essas empresas. Montadoras de veículos como Ford, Fiat, General Motors, Volkswagen e Peugeot também tiveram seus nomes mencionados. O barulho foi grande: uma cadeia produtiva globalizada e bilionária baseada na degradação ambiental e na exploração de mão de obra miserável.
Uma das consequências mais relevantes, a criação do Instituto Carvão Cidadão (ICC), surgiu com a missão de monitorar as carvoarias. Foram contratadas equipes de fiscais, muitos deles aposentados do Ministério do Trabalho. Os recursos vieram das guseiras que aderiram, e os dados auditados eram publicados na página do ICC na internet. Os fornecedores cadastrados passaram por melhorias estruturais e avançaram no cumprimento das leis trabalhistas. “Era para dar transparência ao setor”, diz o executivo André Câncio, da Queiroz Galvão, o idealizador do ICC.
No dia em que me recebe em seu escritório, na sede paulistana da empresa, às margens de uma avenida movimentada na zona sul, Câncio conta que há 15 anos, quando foi a Carajás pela primeira vez, ficou assustado. O carvão era então carregado em cestos de palha, levados nos ombros dos trabalhadores até os caminhões – para despejá-lo na carroceria, equilibravam-se em rampas ou escadas de madeira a 4 metros do chão. Acidentes eram frequentes. “Entendi logo que havia duas saídas: ou deixar o negócio ou promover mudanças”, diz. As inovações não foram celebradas por todos. Acionistas da Queiroz Galvão receberam pedidos de donos de outras guseiras para afastar o executivo antes que ele “quebrasse de vez o setor”.
André Câncio foi presidente do ICC por seis anos. Saiu, em 2011, porque as usinas que dirige passaram a ser integralmente alimentadas por madeira de florestas plantadas de eucalipto pertencentes ao próprio grupo. “Não há mais fornecedores a serem monitorados”, enfatiza. Citada no estudo de 2004, a empresa é hoje a única do polo com certificação de créditos de carbono emitida por um órgão das Nações Unidas. Ele também reclama que, neste momento, o ICC “está sendo usado para proteger os membros, e não como uma fotografia da evolução social”.
Na prática, carvoarias regularizadas servem de fachada para a atuação das clandestinas. “É uma espécie de verniz de legalidade, conhecido como esquentamento da origem da madeira”, detalha o jornalista ambiental Marques Casara.
Situação ainda pior veio à tona em março de 2010, quando fiscais do Ibama sobrevoaram o leste do Pará e constataram seis carvoarias de existência apenas virtual: embora constassem no sistema eletrônico da Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema) chamado Sisflora, não havia sinal físico de sua presença. Para o Ibama, são comerciantes de crédito, empresas fantasma ou de fachada que acobertam a exploração ilícita.
Desde 2009, “o próprio Sisflora”, explica o procurador Tiago Rabelo, do Ministério Público Federal (MPF), “passou a gerar um excedente de crédito virtual na conta das serrarias”. “É fraude na Sema. Já denunciamos, mas continua a acontecer”, acusa Roberto José Scarpari. “Na Bíblia, não tem a multiplicação dos pães?”, pergunta ele. “Aqui em Carajás acontece o milagre da multiplicação dos volumes de madeira.”
A corrupção é tão disseminada que, na porta de entrada de uma siderúrgica, o caminhoneiro Silva (ele pede para não revelar seu primeiro nome), logo após descarregar, relata: “Em cada posto da polícia estadual na PA-150, somos obrigados a deixar 50 reais”. E continua: “A taxa é fixa, não é segredo para ninguém. Quando a gente carrega o caminhão, o dono da carvoaria põe o dinheiro da polícia no nosso bolso”. Ele diz ser da mesma forma para outros tipos de carga.
No caso das guseiras, os inúmeros dados conflitantes motivaram ações civis do MPF. Elas foram ajuizadas contras as três maiores produtoras do Pará: Cosipar, Ibérica e Sidepar, que, apenas em 2009, teriam promovido o desmate ilegal de 27 mil hectares de floresta – o equivalente a 15 mil caminhões carregados de carvão enfileirados. As atividades dessas empresas foram suspensas e, em fevereiro de 2012, elas aceitaram assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para remodelar seus métodos e alcançar a autossuficiência em madeira até 2014 – o MPF enviará recomendações aos compradores para não mais adquirirem gusa dessas empresas se houver descumprimento. O governo estadual também aderiu e comprometeu-se a melhorar a qualidade do monitoramento. Coincidência ou não, a Cosipar anunciou o desligamento de todos os seus altos-fornos no fim de 2012.
Na carvoaria em jacundá, o agente Roberto José Scarpari, do Ibama, ordena ao motorista do caminhão: “Me mostra a guia”. O rapaz abre o porta-luvas e entrega o documento no qual constam a quantidade e a origem da madeira. A análise do papel deixa claro haver mais coisas fora do lugar além do tronco da castanheira. Só de olhar dá para perceber que o volume na caçamba é pelo menos três vezes menor que o indicado na documentação. Para piorar, o papel foi expedido dez dias antes, e é impossível saber quantos transportes de carga foram feitos nesse período. “Usar a mesma guia várias vezes é ilegal e uma das maneiras de acobertar madeira irregular.”
A operação prossegue e os fiscais se espalham. O chão de terra batida abriga, na realidade, duas carvoarias. Ao fundo, em uma porção mais alta do terreno, está a maior delas, com uns 150 fornos. A aparência é melhor que a do “andar de baixo”, e quase todos os trabalhadores vestem o equipamento de segurança.
A carvoaria mais simples é uma cooperativa com 73 membros. No passado, seus integrantes trabalhavam para empresários, os donos de carvoarias, alguns vindos de outras regiões do país, ou pecuaristas locais que resolviam fazer dinheiro da limpeza dos pastos. Hoje, os cooperados detêm a posse dos fornos e empregam ajudantes.
Um universo de brasa e fumaça envolve esses homens, que carregam toras tão pesadas quanto eles mesmos. Arriscam a vida ao se submeter às altas temperaturas sem proteção. Preferem o carvão a derramar suor no cultivo da mandioca e a vender farinha a preço de nada. “É sofrido, mas o dinheiro vem mais rápido”, admite Scarpari.
Sem documentação, a cooperativa atua de maneira informal. Enfrentam escassez de madeira e concorrem com carvoarias maiores. “A gente trabalha só com ripa, resto de pasto, cerca velha, e vende o balaio [cesto com carvão] pra quem chega”, conta Benedito Laurenço Dias, gerente do lugar. “Os compradores vêm de todo canto e já trazem o documento. De onde for, a gente vende.”
Não deveria ser assim. A instalação de uma carvoaria requer licença do órgão ambiental estadual, obtida após a comprovação da fonte de madeira a ser explorada e da quantidade a ser retirada. Esses dados permitem às secretarias estaduais de meio ambiente calcular o total de carvão que pode ser fabricado e vendido. O transporte da carga, acompanhado de guias florestais exclusivos para cada viagem, também é monitorado. Quando o volume comercializado e a quantidade produzida são compatíveis, o negócio está regular. No entanto, as regras são burladas com a falsificação de documentos e esquemas de suborno.
Em uma zona marcada pela ausência de uma economia organizada (segundo o IBGE, só 12% dos homens na região Norte têm ocupação fixa), a falta de opção leva os trabalhadores a ignorar os danos ao meio ambiente ou as péssimas condições de trabalho. “Se eu pudesse”, relata Dias, “parava hoje. Era uma árvore a menos destruída.” A verdade é que, com o carvão bem cotado, normas que protegem árvores como a castanheira por seu valor simbólico não vão salvar a floresta.
Das atividades econômicas relacionadas na “lista suja” do trabalho escravo na Amazônia, um cadastro mantido pelo Ministério do Trabalho, somente a pecuária bovina possui mais representantes que o carvão vegetal. São funcionários expostos a condições análogas à escravidão: sem registro em carteira, sem equipamento de segurança, sem alojamento, sem acesso à água potável.
A perspectiva de renda estimula o deflorestamento até em áreas proibidas, como terras indígenas e assentamentos rurais. Cientistas do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) analisaram imagens de satélite e mediram o desmatamento até 2010 em assentamentos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) na Amazônia em 133 mil quilômetros quadrados – três vezes o território do estado do Rio de Janeiro. Marabá abriga 500 desses projetos, a maior concentração do país.
“A complexidade das questões sociais tem relação direta com a política fundiária aplicada no interior da Amazônia”, frisa José Batista, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Ele explica que as terras ao norte do Brasil eram, em sua maioria, públicas até o início da década de 1960, e parte delas estava ocupada por milhares de pequenos posseiros, além das populações tradicionais. A partir desse período, o governo federal passa a oferecer vantagens fiscais a grandes empresários e grupos econômicos interessados em investir na região. Mas muitos se dedicam a comprar terras para especulação. Do encontro entre novos donos e antigos posseiros surgem conflitos e grilagem de terras, além da figura do pistoleiro, homem armado contratado para impedir invasões.
No Pará, esse ciclo foi forte. A década de 1990 foi a mais violenta, mas os efeitos ainda estão presentes. O casal de extrativistas José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo, assassinados em 2011 em Nova Ipixuna, era opositor declarado de madeireiros, pecuaristas e carvoeiros ilegais. Coletores de castanha, os dois apelidaram a maior árvore de seu quintal de A Majestade. Pouco antes de morrer, em uma palestra que pode ser encontrada na internet, Zé Cláudio falou dos doces feitos com a castanha e da dor “de ver uma árvore dessas em um caminhão”. O extrativista alertou ainda para as ameaças contra sua vida: “Estou aqui agora, e em um mês posso não estar”. Seus parentes seguem sob intimidação.
No dia seguinte à operação na carvoaria, vamos ao escritório do Ibama em Marabá, que funciona em uma casa térrea de um bairro residencial. O clima é o de uma delegacia. Os agentes andam pelos corredores com uma pistola automática calibre 40 na cintura. Um grupo de policiais ambientais, armados com metralhadoras israelenses, veio para dar apoio em outra ação. Além deles, um segurança privado, com um 38, vigia a porta. Não consigo decidir entre me sentir seguro e o contrário.
No terreno baldio ao lado, quatro caminhões apreendidos com cargas ilegais de carvão funcionam como um lembrete da presença da fiscalização. “Aquele ali”, aponta Scarpari, “usou castanheira até na armação da carroceria.” É ainda uma tentativa de driblar as limitações financeiras e o número reduzido de agentes, realidades que impedem atuação mais ostensiva. A falta de recursos exige a priorização de poucas operações.
Em campo, a arma dos fiscais serve mais para desencorajar represálias do que para efetuar disparos. Apesar disso, é preciso bravura: Marabá é a cidade mais violenta do país para jovens entre 18 e 29 anos de idade. Uma das razões é o desenvolvimento econômico, que atrai migrantes de outros locais do Norte e do Nordeste. Sua população de 200 mil habitantes não para de crescer.
O município e a vizinha Parauapebas, onde fica a mina de Carajás, estão demarcados por novas áreas de mineração. A principal delas, chamada Carajás Serra Sul S11D, é o maior projeto da história da Vale. O investimento de 40 bilhões de reais propiciará uma produção estimada de 90 milhões de toneladas de minério de ferro por ano. Por isso, a duplicação da ferrovia está em curso. O estudo de viabilidade de uma hidrelétrica no rio Tocantins também acaba de ser aprovado.
Marabá lembra um canteiro de obras, com um tráfego carregado de motos e picapes modernas. Há bairros marginais à estrada de ferro, o que já levou a acidentes. Por outro lado, em uma zona chuvosa e com rodovias ruins, a ferrovia é opção de locomoção para 1 100 passageiros por dia.
Em uma manhã de sábado, eu e o fotógrafo Izan Petterle estamos entre eles. Partimos de Marabá com destino a Açailândia. A viagem de oito horas tem seu ápice quando vendedores de carne de tatu com bacias na cabeça aproveitam a parada no meio do caminho para invadir os vagões.
A chegada a Açailândia revela uma cidade nova, emancipada em 1981, hoje com 105 mil habitantes – três vezes menos que as cabeças de gado que fazem dela a dona do maior rebanho maranhense. São poucos anos de vida oficial e muito dinheiro: a segunda maior arrecadação do estado. Fica difícil entender por que o esgoto corre a céu aberto em pleno centro comercial.
Tudo ali é ainda mais incompreensível quando vamos ao parque industrial de Piquiá, onde funcionam cinco usinas: Ferro Gusa do Maranhão (Fergumar), Gusa Nordeste, Companhia Siderúrgica Vale do Pindaré (da Queiroz Galvão), Siderúrgica do Maranhão (Simasa) e Viena Siderúrgica. Mil pessoas estão acomodadas em uma área vizinha das siderúrgicas em um bairro pobre conhecido como Piquiá de Baixo.
Lá, adultos e crianças convivem com montanhas de carvão, formadas pela moinha, sobra da siderurgia depositada durante anos pela empresa Gusa Nordeste. Queimaduras são comuns no material inflamável e já houve acidentes fatais.
A poeira ainda invade as casas e dificulta tarefas simples, como cozinhar. Para impedir que o almoço seja servido com pedaços de fuligem de carvão, uma senhora relata que, enquanto fatia bifes, suas filhas abrem guarda-chuvas a seu redor. A roupa também não fica limpa, seja no varal, seja em contato com a água contaminada retirada de um lago. Problemas respiratórios são conhecidos por todos. Piquiá é a expressão mais dramática das contradições do polo Carajás.
No avião a caminho de São Paulo, penso em tudo o que vi e tento imaginar o futuro dessa região amazônica. Sentado na poltrona ao lado da janela, busco pensamentos otimistas e recordo os avanços sociais, a coragem de homens abnegados, as novas tecnologias e as áreas plantadas. “Não somos contra a atividade. Queremos torná-la sustentável”, disseram-me fiscais, procuradores e ambientalistas.
A imagem do tronco da castanheira jogado na carroceria do caminhão não me sai da cabeça. Incomoda o contraste com os cenários surreais escondidos às margens dos rios volumosos na floresta, onde as matas de castanhais ostentam árvores com 50 metros de altura. Os ramos mais baixos ficam a uns 30 metros do chão, e pela manhã a luz solar se esforça em varar a folharada. Embora a maioria das plantas tropicais não exceda os 400 anos de idade, os cientistas sabem que as castanheiras têm vida longa. Indivíduos grandes podem ter mil anos e capacidade de sustentar uma produção de amêndoas por oito séculos.
Essa, porém, é a floresta do passado, um legado que no sudeste do Pará foi transformado em pasto para o gado, em toras comerciais, em ferro e fogo. Quem quiser conhecer a Amazônia do século 21 vai ter de percorrer outros caminhos. Em vez do emaranhado de galhos e trilhas de animais na relva, proliferam estradas de terra clandestinas e rodovias esburacadas.
O carvão e a madeira escoados por essas vias estão presentes no mundo globalizado. Talvez a turbina do avião, ao alcance de minha vista, tenha sido construída com o gusa de Carajás – nesse caso, de origem legal ou ilegal? Reluto, mas tento entender. Não há solução simples.

Nenhum comentário:

Postar um comentário