O legado da siderurgia na Amazônia envolve madeira da
floresta convertida em carvão e trabalho degradante. Mas já há quem se esforce
por práticas mais sustentáveis
EDIÇÃO 155/FEVEREIRO DE 201318/02/2013
por Thiago Medaglia Fonte: NATIONAL GEOGRAPHIC
BRASIL
Viajo
por uma das decadentes rodovias da Amazônia. Estamos a caminho de uma carvoaria
no município paraense de Jacundá. À frente do carro onde estou, duas picapes do
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(Ibama), órgão federal de fiscalização. Pela PA-150, que liga Marabá a Belém, a
urgência dos líderes do comboio causa a sensação de se correr um rali. Quase
não dá tempo de ler a placa no quintal de uma casa simples: “Vende-se carvão”.
É para churrasco.
Horas
depois de ter partido de Marabá, maior cidade da região, entramos por uma
estrada de terra. Leva 30 minutos até avistar outra placa: “Obrigatório o uso
de Ipeis”. Embora a mensagem seja relevante, o certo é EPIs, sigla para
Equipamento de Proteção Individual, nome do kit (calça, bota, camisa de manga
comprida, capacete e óculos) para manuseio de produtos perigosos.
Os
fornos de carvão, espalhados pelo chão de terra seca e com formato semelhante a
iglus de esquimó, dão uma aparência medieval à carvoaria. Homens sujos e sem
camisa nos fitam curiosos.
Os
fiscais do Ibama descem apressados dos carros e abordam sujeitos que
descarregam a madeira acomodada em uma caminhonete. É quando o agente Roberto
José Scarpari aponta: “Uma castanheira”. Na nossa frente, em vez do tronco robusto
da árvore frondosa alçada ao céu, só um resto de tora jogada na carroceria do
velho caminhão. A única semelhança com as exuberantes castanheiras da floresta
em pé é a companhia de outros tipos de árvore a seu lado. Todas agora prestes a
serem carbonizadas.
Depois
de transformadas em carvão, elas servirão de combustível para as usinas locais
na produção de ferro fundido. O carvão vegetal é a base do parque siderúrgico
no norte do Brasil, concentrado entre o sudeste do Pará e o oeste do Maranhão,
e responsável por 1 bilhão de dólares em exportações em 2011. Chamado de polo
Carajás, ele é abastecido em mais da metade de sua demanda por madeira nativa
retirada da floresta. A prática do carvoejamento e o comércio com as
siderúrgicas não são ilegais – a questão determinante é a origem da madeira.
O caso
das castanheiras é emblemático. Protegidas por um decreto de lei federal de
1994, que proíbe seu corte, elas não poderiam ser alvo de madeireiros e
carvoeiros. Só que a legislação nem sempre é cumprida. “Em uma única ação”,
avisa Scarpari, “topei com 50 delas empilhadas.” Ao longo dos anos, os estoques
dessa árvore do sudeste paraense foram vitimados por pastagens, assentamentos,
expansão urbana e mineração.
Mas
entender a relação entre a madeira e o aço exige antes um olhar para a história
da exploração do subsolo local. Principal província mineral do planeta, a
Amazônia abriga o maior depósito de minério de ferro do mundo: a mina de
Carajás, operada desde a década de 1980 pela estatal Companhia Vale do Rio Doce
– há 15 anos uma empresa privada chamada Vale.
A
presença abundante de minério estimulou a criação de um parque industrial
siderúrgico ainda durante a ditadura militar. Nesse mesmo período,
impulsionadas por benefícios fiscais, usinas foram instaladas em duas
localidades: Marabá, no Pará, e Açailândia, no Maranhão. Para escoar a
produção, foi construída a estrada de ferro Carajás, com 892 quilômetros de
extensão, que liga o distrito de Carajás, no município de Parauapebas, ao
terminal marítimo de Ponta da Madeira, próximo ao porto do Itaqui, em São Luís.
Idealizado
em um período no qual o projeto político contemplava incentivos ao
desmatamento, o polo nasceu com fome de madeira. “No rastro da expansão da
siderurgia, consolidou-se um mercado de carvão, feito por pequenos produtores,
pulverizado entre milhares de pequenos fornecedores”, explica o jornalista
Leonardo Sakamoto, um dos primeiros a denunciar a situação.
Pior:
havia informação. Em 1987, um estudo da Vale do Rio Doce assinado pelo geógrafo
Azis Ab’Saber alertava para o fato de que, “na ótica dos empresários
siderúrgicos, tudo é computável no balanço das viabilidades, menos os custos
ambientais ou os impactos sociais negativos”.
O
carvão é a fonte de energia mais utilizada pelo homem. E não se trata somente
de uma área específica como a da siderurgia. Quase a metade do mundo depende de
sua queima para não ficar sem luz. Em boa parte da Europa e da Ásia, o carvão
de origem mineral é utilizado na produção de energia elétrica. Isso porque ele
é o combustível fóssil mais abundante no planeta – bem mais que o petróleo e o
gás natural. Sua origem remonta a milhões de anos, quando gigantescas árvores
pré-históricas foram encobertas por lava vulcânica. Depositada ao longo das
eras, a matéria orgânica soterrada deu origem às jazidas de carvão aproveitadas
no período industrial.
No
Brasil, onde as reservas conhecidas de carvão mineral são escassas, preponderam
outras matrizes energéticas. Em torno de 70% da eletricidade consumida no país
vem de usinas hidrelétricas, nas quais a irradiação de gases de efeito estufa é
bem menor. Já na siderurgia, embora algumas usinas nacionais importem carvão
mineral, é bastante disseminado o uso de carvão vegetal, do qual somos o maior
produtor no mundo (foram 7,4 milhões de toneladas em 2010, 85% delas destinadas
ao setor siderúrgico). “Em vez de soterrar as árvores e esperar milhões de anos
pela conversão, a madeira é aquecida e transformada em carvão”, sintetiza o
engenheiro florestal José Otávio Brito, do Departamento de Ciências Florestais
da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de
São Paulo.
Nos
altos-fornos siderúrgicos, além de fornecer calor, o carvão cumpre o papel de
redutor químico, em uma reação em que o carbono contido em suas moléculas é
fixado no minério de ferro. O resultado imediato dessa primeira fusão é o
ferro-gusa, com base no qual podem ser obtidos o aço e ainda uma série de
ferroligas, com diversas destinações na indústria, que varia conforme o
elemento adicionado ao ferro (manganês, silício, cromo). À exceção de uma
empresa, todas as usinas do polo Carajás contemplam apenas a fabricação de
lingotes de ferro-gusa – daí serem chamadas de “guseiras”.
A
siderurgia brasileira é competitiva. Encontra- se aqui o maior parque industrial
de aço da América do Sul, e uma das dez maiores produções do mundo. Entre as
usinas integradas, ou aciarias (aquelas que incorporam a fabricação de aço), o
afluxo de capital foi significativo na década de 1990 em função das
privatizações. Há siderúrgicas desse tipo em pelo menos nove estados
brasileiros, todas comandadas por grandes grupos econômicos. Nos últimos anos,
sua produção é marcada por iniciativas que visam minimizar o alto impacto da
atividade, tais como programas de conservação de energia, recirculação de água
e reciclagem do aço.
Já o
grupo composto pelas guseiras se divide em dois polos. Um deles é o Carajás, o
maior exportador do gusa nacional, vendido sobretudo aos Estados Unidos. O
outro se concentra em Minas Gerais (com usinas no Espírito Santo e no Mato
Grosso do Sul), e abastece as aciarias do Sudeste. As guseiras consomem mais
carvão vegetal que as aciarias; por isso, é comum terem seus nomes ligados a
denúncias de desmatamento.
O aço
representa 90% dos metais consumidos pela população mundial: peças automotivas,
turbinas de avião a jato, lavadoras domésticas, secadores de cabelo,
instrumentos médicos, celulares, maquinário utilizado na produção de alimentos,
cortadores de unha, elevadores, construção civil. Sua importância é comparável
à do petróleo.
Favorecidos
pelas jazidas de minério de ferro, outro componente-chave, Rússia, Brasil e
Ucrânia são os maiores exportadores mundiais de ferro-gusa. No Leste Europeu, a
siderurgia é baseada no coque metalúrgico, derivado do carvão mineral. Seu
poder calorífico é maior que o do carvão vegetal; no entanto, a lista de
restrições a seu uso, também. Degradação do solo e de corpos d’água nas áreas
de extração, doenças respiratórias, acidentes com mineiros, além de chuva ácida
e cinza tóxica, estão entre as motivações contrárias à escolha do coque.
A
princípio, a opção brasileira pelo carvão vegetal é uma vantagem. O plantio de
árvores, por exemplo, pode compensar a emissão dos gases de efeito estufa.
Acontece que, em Carajás, a devastação da natureza e o impacto social colocam
essa distinção em cheque. O caminho para tornar a siderurgia sustentável no
polo passa pelo cumprimento da legislação trabalhista e por investimentos em
florestas plantadas de eucalipto, apesar “dos danos que a monocultura em larga
escala dessa planta pode gerar aos recursos hídricos”, ressalta Leonardo
Sakamoto. É a alternativa viável para um lugar já degradado.
Até
2004, ano da publicação do primeiro estudo de mapeamento da cadeia produtiva do
aço na Amazônia, a opinião pública pouco sabia do cenário em Marabá e
Açailândia. Intitulada “Escravos do Aço”, a pesquisa identificou as
siderúrgicas do polo Carajás como financiadoras de carvoarias que usavam
trabalhadores escravos na produção de carvão. De acordo com o relatório, empresas
ligadas a grupos como Queiroz Galvão e Gerdau se beneficiaram da escravidão
para fabricar gusa. A Vale e a mais importante companhia de aço dos Estados
Unidos, a Nucor Corporation (também a maior compradora do gusa amazônico até
hoje), mantinham relações comerciais com essas empresas. Montadoras de veículos
como Ford, Fiat, General Motors, Volkswagen e Peugeot também tiveram seus nomes
mencionados. O barulho foi grande: uma cadeia produtiva globalizada e
bilionária baseada na degradação ambiental e na exploração de mão de obra
miserável.
Uma das
consequências mais relevantes, a criação do Instituto Carvão Cidadão (ICC),
surgiu com a missão de monitorar as carvoarias. Foram contratadas equipes de
fiscais, muitos deles aposentados do Ministério do Trabalho. Os recursos vieram
das guseiras que aderiram, e os dados auditados eram publicados na página do
ICC na internet. Os fornecedores cadastrados passaram por melhorias estruturais
e avançaram no cumprimento das leis trabalhistas. “Era para dar transparência
ao setor”, diz o executivo André Câncio, da Queiroz Galvão, o idealizador do
ICC.
No dia
em que me recebe em seu escritório, na sede paulistana da empresa, às margens
de uma avenida movimentada na zona sul, Câncio conta que há 15 anos, quando foi
a Carajás pela primeira vez, ficou assustado. O carvão era então carregado em
cestos de palha, levados nos ombros dos trabalhadores até os caminhões – para
despejá-lo na carroceria, equilibravam-se em rampas ou escadas de madeira a 4
metros do chão. Acidentes eram frequentes. “Entendi logo que havia duas saídas:
ou deixar o negócio ou promover mudanças”, diz. As inovações não foram
celebradas por todos. Acionistas da Queiroz Galvão receberam pedidos de donos
de outras guseiras para afastar o executivo antes que ele “quebrasse de vez o
setor”.
André
Câncio foi presidente do ICC por seis anos. Saiu, em 2011, porque as usinas que
dirige passaram a ser integralmente alimentadas por madeira de florestas
plantadas de eucalipto pertencentes ao próprio grupo. “Não há mais fornecedores
a serem monitorados”, enfatiza. Citada no estudo de 2004, a empresa é hoje a
única do polo com certificação de créditos de carbono emitida por um órgão das
Nações Unidas. Ele também reclama que, neste momento, o ICC “está sendo usado
para proteger os membros, e não como uma fotografia da evolução social”.
Na
prática, carvoarias regularizadas servem de fachada para a atuação das
clandestinas. “É uma espécie de verniz de legalidade, conhecido como
esquentamento da origem da madeira”, detalha o jornalista ambiental Marques
Casara.
Situação
ainda pior veio à tona em março de 2010, quando fiscais do Ibama sobrevoaram o
leste do Pará e constataram seis carvoarias de existência apenas virtual:
embora constassem no sistema eletrônico da Secretaria Estadual de Meio Ambiente
(Sema) chamado Sisflora, não havia sinal físico de sua presença. Para o Ibama,
são comerciantes de crédito, empresas fantasma ou de fachada que acobertam a
exploração ilícita.
Desde
2009, “o próprio Sisflora”, explica o procurador Tiago Rabelo, do Ministério
Público Federal (MPF), “passou a gerar um excedente de crédito virtual na conta
das serrarias”. “É fraude na Sema. Já denunciamos, mas continua a acontecer”,
acusa Roberto José Scarpari. “Na Bíblia, não tem a multiplicação dos pães?”,
pergunta ele. “Aqui em Carajás acontece o milagre da multiplicação dos volumes
de madeira.”
A
corrupção é tão disseminada que, na porta de entrada de uma siderúrgica, o
caminhoneiro Silva (ele pede para não revelar seu primeiro nome), logo após
descarregar, relata: “Em cada posto da polícia estadual na PA-150, somos
obrigados a deixar 50 reais”. E continua: “A taxa é fixa, não é segredo para
ninguém. Quando a gente carrega o caminhão, o dono da carvoaria põe o dinheiro
da polícia no nosso bolso”. Ele diz ser da mesma forma para outros tipos de
carga.
No caso
das guseiras, os inúmeros dados conflitantes motivaram ações civis do MPF. Elas
foram ajuizadas contras as três maiores produtoras do Pará: Cosipar, Ibérica e
Sidepar, que, apenas em 2009, teriam promovido o desmate ilegal de 27 mil
hectares de floresta – o equivalente a 15 mil caminhões carregados de carvão
enfileirados. As atividades dessas empresas foram suspensas e, em fevereiro de
2012, elas aceitaram assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para
remodelar seus métodos e alcançar a autossuficiência em madeira até 2014 – o
MPF enviará recomendações aos compradores para não mais adquirirem gusa dessas
empresas se houver descumprimento. O governo estadual também aderiu e
comprometeu-se a melhorar a qualidade do monitoramento. Coincidência ou não, a
Cosipar anunciou o desligamento de todos os seus altos-fornos no fim de 2012.
Na
carvoaria em jacundá, o agente Roberto José Scarpari, do Ibama, ordena ao
motorista do caminhão: “Me mostra a guia”. O rapaz abre o porta-luvas e entrega
o documento no qual constam a quantidade e a origem da madeira. A análise do
papel deixa claro haver mais coisas fora do lugar além do tronco da
castanheira. Só de olhar dá para perceber que o volume na caçamba é pelo menos
três vezes menor que o indicado na documentação. Para piorar, o papel foi
expedido dez dias antes, e é impossível saber quantos transportes de carga
foram feitos nesse período. “Usar a mesma guia várias vezes é ilegal e uma das
maneiras de acobertar madeira irregular.”
A
operação prossegue e os fiscais se espalham. O chão de terra batida abriga, na
realidade, duas carvoarias. Ao fundo, em uma porção mais alta do terreno, está
a maior delas, com uns 150 fornos. A aparência é melhor que a do “andar de baixo”,
e quase todos os trabalhadores vestem o equipamento de segurança.
A
carvoaria mais simples é uma cooperativa com 73 membros. No passado, seus
integrantes trabalhavam para empresários, os donos de carvoarias, alguns vindos
de outras regiões do país, ou pecuaristas locais que resolviam fazer dinheiro
da limpeza dos pastos. Hoje, os cooperados detêm a posse dos fornos e empregam
ajudantes.
Um
universo de brasa e fumaça envolve esses homens, que carregam toras tão pesadas
quanto eles mesmos. Arriscam a vida ao se submeter às altas temperaturas sem
proteção. Preferem o carvão a derramar suor no cultivo da mandioca e a vender
farinha a preço de nada. “É sofrido, mas o dinheiro vem mais rápido”, admite
Scarpari.
Sem
documentação, a cooperativa atua de maneira informal. Enfrentam escassez de
madeira e concorrem com carvoarias maiores. “A gente trabalha só com ripa,
resto de pasto, cerca velha, e vende o balaio [cesto com carvão] pra quem
chega”, conta Benedito Laurenço Dias, gerente do lugar. “Os compradores vêm de
todo canto e já trazem o documento. De onde for, a gente vende.”
Não
deveria ser assim. A instalação de uma carvoaria requer licença do órgão
ambiental estadual, obtida após a comprovação da fonte de madeira a ser
explorada e da quantidade a ser retirada. Esses dados permitem às secretarias
estaduais de meio ambiente calcular o total de carvão que pode ser fabricado e
vendido. O transporte da carga, acompanhado de guias florestais exclusivos para
cada viagem, também é monitorado. Quando o volume comercializado e a quantidade
produzida são compatíveis, o negócio está regular. No entanto, as regras são
burladas com a falsificação de documentos e esquemas de suborno.
Em uma
zona marcada pela ausência de uma economia organizada (segundo o IBGE, só 12%
dos homens na região Norte têm ocupação fixa), a falta de opção leva os
trabalhadores a ignorar os danos ao meio ambiente ou as péssimas condições de
trabalho. “Se eu pudesse”, relata Dias, “parava hoje. Era uma árvore a menos
destruída.” A verdade é que, com o carvão bem cotado, normas que protegem
árvores como a castanheira por seu valor simbólico não vão salvar a floresta.
Das
atividades econômicas relacionadas na “lista suja” do trabalho escravo na
Amazônia, um cadastro mantido pelo Ministério do Trabalho, somente a pecuária
bovina possui mais representantes que o carvão vegetal. São funcionários
expostos a condições análogas à escravidão: sem registro em carteira, sem
equipamento de segurança, sem alojamento, sem acesso à água potável.
A
perspectiva de renda estimula o deflorestamento até em áreas proibidas, como
terras indígenas e assentamentos rurais. Cientistas do Instituto do Homem e
Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) analisaram imagens de satélite e mediram o
desmatamento até 2010 em assentamentos do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (Incra) na Amazônia em 133 mil quilômetros quadrados – três
vezes o território do estado do Rio de Janeiro. Marabá abriga 500 desses
projetos, a maior concentração do país.
“A
complexidade das questões sociais tem relação direta com a política fundiária
aplicada no interior da Amazônia”, frisa José Batista, da Comissão Pastoral da
Terra (CPT). Ele explica que as terras ao norte do Brasil eram, em sua maioria,
públicas até o início da década de 1960, e parte delas estava ocupada por
milhares de pequenos posseiros, além das populações tradicionais. A partir
desse período, o governo federal passa a oferecer vantagens fiscais a grandes
empresários e grupos econômicos interessados em investir na região. Mas muitos
se dedicam a comprar terras para especulação. Do encontro entre novos donos e
antigos posseiros surgem conflitos e grilagem de terras, além da figura do
pistoleiro, homem armado contratado para impedir invasões.
No
Pará, esse ciclo foi forte. A década de 1990 foi a mais violenta, mas os
efeitos ainda estão presentes. O casal de extrativistas José Cláudio Ribeiro e
Maria do Espírito Santo, assassinados em 2011 em Nova Ipixuna, era opositor
declarado de madeireiros, pecuaristas e carvoeiros ilegais. Coletores de
castanha, os dois apelidaram a maior árvore de seu quintal de A Majestade.
Pouco antes de morrer, em uma palestra que pode ser encontrada na internet, Zé
Cláudio falou dos doces feitos com a castanha e da dor “de ver uma árvore
dessas em um caminhão”. O extrativista alertou ainda para as ameaças contra sua
vida: “Estou aqui agora, e em um mês posso não estar”. Seus parentes seguem sob
intimidação.
No dia
seguinte à operação na carvoaria, vamos ao escritório do Ibama em Marabá, que
funciona em uma casa térrea de um bairro residencial. O clima é o de uma
delegacia. Os agentes andam pelos corredores com uma pistola automática calibre
40 na cintura. Um grupo de policiais ambientais, armados com metralhadoras
israelenses, veio para dar apoio em outra ação. Além deles, um segurança
privado, com um 38, vigia a porta. Não consigo decidir entre me sentir seguro e
o contrário.
No
terreno baldio ao lado, quatro caminhões apreendidos com cargas ilegais de
carvão funcionam como um lembrete da presença da fiscalização. “Aquele ali”,
aponta Scarpari, “usou castanheira até na armação da carroceria.” É ainda uma
tentativa de driblar as limitações financeiras e o número reduzido de agentes,
realidades que impedem atuação mais ostensiva. A falta de recursos exige a
priorização de poucas operações.
Em
campo, a arma dos fiscais serve mais para desencorajar represálias do que para
efetuar disparos. Apesar disso, é preciso bravura: Marabá é a cidade mais
violenta do país para jovens entre 18 e 29 anos de idade. Uma das razões é o desenvolvimento
econômico, que atrai migrantes de outros locais do Norte e do Nordeste. Sua
população de 200 mil habitantes não para de crescer.
O
município e a vizinha Parauapebas, onde fica a mina de Carajás, estão
demarcados por novas áreas de mineração. A principal delas, chamada Carajás
Serra Sul S11D, é o maior projeto da história da Vale. O investimento de 40
bilhões de reais propiciará uma produção estimada de 90 milhões de toneladas de
minério de ferro por ano. Por isso, a duplicação da ferrovia está em curso. O
estudo de viabilidade de uma hidrelétrica no rio Tocantins também acaba de ser
aprovado.
Marabá
lembra um canteiro de obras, com um tráfego carregado de motos e picapes
modernas. Há bairros marginais à estrada de ferro, o que já levou a acidentes.
Por outro lado, em uma zona chuvosa e com rodovias ruins, a ferrovia é opção de
locomoção para 1 100 passageiros por dia.
Em uma
manhã de sábado, eu e o fotógrafo Izan Petterle estamos entre eles. Partimos de
Marabá com destino a Açailândia. A viagem de oito horas tem seu ápice quando
vendedores de carne de tatu com bacias na cabeça aproveitam a parada no meio do
caminho para invadir os vagões.
A
chegada a Açailândia revela uma cidade nova, emancipada em 1981, hoje com 105
mil habitantes – três vezes menos que as cabeças de gado que fazem dela a dona
do maior rebanho maranhense. São poucos anos de vida oficial e muito dinheiro:
a segunda maior arrecadação do estado. Fica difícil entender por que o esgoto
corre a céu aberto em pleno centro comercial.
Tudo
ali é ainda mais incompreensível quando vamos ao parque industrial de Piquiá,
onde funcionam cinco usinas: Ferro Gusa do Maranhão (Fergumar), Gusa Nordeste,
Companhia Siderúrgica Vale do Pindaré (da Queiroz Galvão), Siderúrgica do
Maranhão (Simasa) e Viena Siderúrgica. Mil pessoas estão acomodadas em uma área
vizinha das siderúrgicas em um bairro pobre conhecido como Piquiá de Baixo.
Lá,
adultos e crianças convivem com montanhas de carvão, formadas pela moinha,
sobra da siderurgia depositada durante anos pela empresa Gusa Nordeste.
Queimaduras são comuns no material inflamável e já houve acidentes fatais.
A
poeira ainda invade as casas e dificulta tarefas simples, como cozinhar. Para
impedir que o almoço seja servido com pedaços de fuligem de carvão, uma senhora
relata que, enquanto fatia bifes, suas filhas abrem guarda-chuvas a seu redor.
A roupa também não fica limpa, seja no varal, seja em contato com a água
contaminada retirada de um lago. Problemas respiratórios são conhecidos por
todos. Piquiá é a expressão mais dramática das contradições do polo Carajás.
No
avião a caminho de São Paulo, penso em tudo o que vi e tento imaginar o futuro
dessa região amazônica. Sentado na poltrona ao lado da janela, busco
pensamentos otimistas e recordo os avanços sociais, a coragem de homens
abnegados, as novas tecnologias e as áreas plantadas. “Não somos contra a
atividade. Queremos torná-la sustentável”, disseram-me fiscais, procuradores e
ambientalistas.
A
imagem do tronco da castanheira jogado na carroceria do caminhão não me sai da
cabeça. Incomoda o contraste com os cenários surreais escondidos às margens dos
rios volumosos na floresta, onde as matas de castanhais ostentam árvores com 50
metros de altura. Os ramos mais baixos ficam a uns 30 metros do chão, e pela manhã
a luz solar se esforça em varar a folharada. Embora a maioria das plantas
tropicais não exceda os 400 anos de idade, os cientistas sabem que as
castanheiras têm vida longa. Indivíduos grandes podem ter mil anos e capacidade
de sustentar uma produção de amêndoas por oito séculos.
Essa,
porém, é a floresta do passado, um legado que no sudeste do Pará foi
transformado em pasto para o gado, em toras comerciais, em ferro e fogo. Quem
quiser conhecer a Amazônia do século 21 vai ter de percorrer outros caminhos.
Em vez do emaranhado de galhos e trilhas de animais na relva, proliferam
estradas de terra clandestinas e rodovias esburacadas.
O
carvão e a madeira escoados por essas vias estão presentes no mundo
globalizado. Talvez a turbina do avião, ao alcance de minha vista, tenha sido
construída com o gusa de Carajás – nesse caso, de origem legal ou ilegal? Reluto,
mas tento entender. Não há solução simples.
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