segunda-feira, 14 de março de 2011

Moisés e os Conselheiros


Domingo à noite é um excelente período para tentarmos esquecer nossos momentos de trabalho e relaxar, tomando um café e fazendo um lanche com os amigos e/ou sua namorada. E quando o trabalho resolve te procurar em um domingo à noite, justamente na hora de seu momento de lazer?

Foi isso o que aconteceu comigo, minha noiva e um amigo. Estávamos no início da noite de domingo tomando um café na Lagoa da Jansen (ponto turístico, bastante frequentado nas noites ludovicenses), quando fomos abordados por um menino. Moisés era seu nome. Tinha 12 anos. Como dezenas de outras crianças de sua idade, estava perambulando pelas ruas e avenidas de São Luis. Se aproximou de uma mesa, aonde um casal estava lanchando. Pediu dinheiro, o que lhe foi negado pelo casal. Estávamos na mesa ao lado. Logo, Moisés se aproximou, ratificando o pedido feito na mesa do lado. Negamos-lhe o dinheiro, mas perguntamos o que estava fazendo ali naquele horário, e para que era o dinheiro. “É para comprar remédio para minha mãe, ela tá doente”, disse Moisés, ainda de forma bastante tímida. “Ela tem problema de pressão.”

Insistimos na conversa. Queríamos ver até onde ela iria chegar. Até onde Moisés iria se abrir conosco. Perguntamos se estava com fome, o que responde afirmativamente com a cabeça. Com uma cadeira vaga à mesa, oferecemos a ele um lanche tipicamente maranhense. “Quero cuscuz de milho”, foi logo falando, sentindo-se um pouco mais à vontade conosco.

“Estou a dois dias fora de casa. Moro no Coroadinho”, falou Moisés. Perguntado sobre a existência de mais familiares, afirmou dizendo que era só ele e a mãe, supostamente doente. Sem tio, irmão, avós. Ao mesmo tempo que comia ferozmente o cuscuz de milho com ovo, carne seca e Coca-Cola, Moisés brincava com os smartphones dispostos sobre a mesa. Impressionante a capacidade do menino em usar tais equipamentos! Sabia todas as funções dos mais diversos aparelhos! A partir daí, parecia que Moisés já nos conhecia a anos!

Não se percebia no rosto de Moisés qualquer sinal que configurasse que aquele menino fosse fazer mal a algum de nós. Parecia que nossos aparelhos eletrônicos estavam mas bem adaptados às mãos de Moisés do que às nossas.

De repente, Moisés retira do bolso traseiro punhado de notas de Real e pede que eu segure. Perguntei onde tinha conseguido aquele dinheiro. 25 reais, em notas de 2 e 5. Ele me disse que conseguiu “trabalhando”. Insisti, e perguntei no que ele trabalhava. “Pedindo, ué.”

Enquanto Moisés se deliciava com o cuscuz de milho e se divertia com os jogos e funções dos smartphones, minha noiva entrava em contato com o Conselheiro Tutelar da área do Centro, que estava de plantão naquele domingo à noite. Fora informado pelo mesmo que, como o menino disse que morava no Coroadinho (bairro da periferia de São Luis), era o Conselho Tutelar o responsável por Moisés. Tentativa frustrada de encontrar o Conselheiro da região do Coroadinho que estava de plantão. O telefone (do plantão!) chamava insistentemente. Recorremos então ao Conselheiro da região do Centro. O mesmo disse para aguardarmos um pouco, que retornaria a ligação, pois estava atendendo a um outro caso.

Ao ouvir o nome do Conselheiro do Centro, Moisés tomou um susto. “Fulano?”. Questionamos o porquê do espanto. Disse apenas que não gostava do Conselheiro, e que iria embora. Insistimos para que ficasse, que nós os levaríamos para casa. Enquanto isso, insistimos nos contatos com os conselheiros tutelares. O da área do Coroadinho não atendeu ao telefone. O da área do Centro, com quem tínhamos falado anteriormente, já estava com o celular (do plantão) desligado.

Na tentativa de ajudar o Moisés de alguma forma, colocamo-lo no carro e partimos rumo à sede do Conselho Tutelar do Centro. Deu para perceber o brilho nos olhos de Moisés quando entrou no carro. Iria andar num jipe. “Legal, posso ir na frente?”. Claro, pedido devidamente negado. Antes de entrar no carro, fui surpreendido com um súbito e caloroso abraço. Pronto. Naquele momento já não existia mais nenhuma ponta de desconfiança por parte dele.

Passando em frente à REFFSA (local onde se encontra o Plantão Central da Polícia Civil em São Luis), Moisés categoricamente verbalizou: “O delegado daí é horrível, manda matar bandido com metralhadora.” Não queria, de jeito nenhum, ser deixado ali.

Ao chegarmos na sede do Conselho Tutelar, a mesma estava fechada, confirmando as nossas suspeitas. Na porta do conselho, luzes apagadas, telefone fora de área... foram no total 20 chamadas. “Ô tia, conselheiro não saí da casa dele no domingo a noite pra pegar menor na rua não!". Infelizmente, a sapiência do pequeno Moisés tornou-se evidente naquele momento. Vendo a sede do Conselho fechada, Moisés pediu que o deixássemos no Terminal da Integração da Praia Grande. Não vislumbrando outra alternativa, nada tínhamos a fazer a não ser atender o pedido de Moisés.

Chegando ao Terminal, antes de descer do carro, fomos agraciados com mais um abraço de Moisés. Pegou a calçada e andou em direção à entrada, com seus pés descalços, calção rasgado e sua camisa preta. Não era esse o destino que gostaríamos de ter dado a Moisés naquela noite. Contudo, foi o que se mostrou possível.

Na curta convivência com Moisés, algumas de suas frases chamaram atenção: "eu não confio em ninguém"; "já me iludiram muito nessa vida"; "me prometeram muita coisa e não cumpriram". O que levou Moisés a confiar em nós? Quem prometeu algo a essa criança? Ainda resta alguma ponta de esperança na vida desse menino?

A impressão que tivemos é que Moisés ainda guarda uma certa ingenuidade infantil, apesar dessa ponta de desesperança.

Por muitas vezes (e com acerto em um grande número delas) questionamos a falta de estrutura do Poder Público em garantir a efetividade dos direitos das crianças de dos adolescentes. No caso específico de Moisés, a situação não se mostrou tanto dessa forma. O mecanismo de proteção estava disponível, foi acionado, mas os responsáveis (os conselheiros tutelares) pelo primeiro atendimento não o fizeram de modo eficaz. Atente-se que, em nenhuma dos dois diálogos com o conselheiro tutelar do Centro, o mesmo relatou problemas estruturais (falta de carro, combustível, etc) para buscar Moisés. Simplesmente não retornou mais as ligações. O conselheiro tutelar do Coroadinho sequer chegou a atender (ou pelo menos retornar) o celular do plantão. A Promotoria da Infância e Adolescência de São Luis já foi devidamente informada de toda a situação.

Finalizo esse post com duas mensagens escritas no Twitter: “Ser conselheiro tutelar é uma missão; criança é prioridade sempre; é o descaso de todos da rede, que traz tantos Moisés...”; “Teu nome [Moisés] é Bíblico, mas com essa sua infância, estás bem distante de viver na Terra Prometida!”

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