terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA MARANHENSE


Permito-me parafrasear José Saramago, um dos maiores escritores da língua portuguesa, para relatar que a cegueira maranhense mais uma vez toma conta do cenário nacional.

Ainda repercutindo a reportagem do Fantástico, da TV Globo, exibida no dia 30 de janeiro do corrente, para nós, maranhenses que lidamos no dia a dia com o sistema de segurança e de Justiça desse estado, tais imagens e fatos das delegacias não são novidade. Para muitos, também já não causam perplexidade.

Há muito, alguns promotores, juízes, advogados, entidades de direitos humanos, vem denunciando as mazelas do sistema prisional e de segurança no Maranhão. A situação é histórica, não sendo responsabilidade apenas dessa gestão. Em razão da recente matéria veiculada no programa dominical da TV Globo, ater-me-ei apenas a uma das situações que mais causou revolta entre os maranhenses e muitos brasileiros: a jaula bacabalense.

Como mostrado na reportagem, a delegacia de polícia da cidade de Bacabal/MA (cidade com cerca de 100 mil habitantes!) é digna de ser comparada a um zoológico, a um circo de horrores. Seres humanos tratados como animais, colocados numa jaula (aqui conhecido como ´Gaiolão´), expostos ao sol, à chuva, ao calor, e ao frio, sem banheiro. Segundo informações, os presos recolhidos ao Gaiolão estão ali por causa da ameaça de outros presos.

Como dito acima, a situação não é desconhecida para muitos de nós. Para citar apenas um exemplo, vamos ao relatório da Ouvidoria de Segurança Pública do Maranhão.

Entre os dias 02 a 04 de agosto de 2010 (6 meses antes da reportagem do Fantástico, sobre a qual alguns gestores alegaram desconhecimento dos fatos), a Ouvidoria de Segurança Pública do Estado, através da sua assessoria, realizou inspeção na referida delegacia. Em seguida, o relatório foi encaminhado ao Secretário de Estado de Segurança Pública logo após.

Segundo relatório produzido pela Ouvidoria, ainda em agosto de 2010, a delegacia possuía apenas 02 celas (com cerca de 16m²) escuras, sem ventilação, com cerca de 17 presos em cada cela. No relatório, o ouvidor expõe a situação de cada preso, individualmente. Ouviu cada um, pacientemente, e descreveu, detalhadamente, a situação processual e de saúde para a Secretaria de Segurança Pública. Relatos de espancamentos por parte da Polícia Militar, de presos com doença mental (sic), presos com problemas de saúde, etc.

Contudo, a parte mais grave da situação vem a seguir. Quando da inspeção realizada pela Ouvidoria de Segurança Pública, verificaram que no ´Gaiolão´ existiam 04 presos. 03 deles eram adolescentes. Vejamos trecho do relatório a seguir:

 “Um fato grave encontrado nesta delegacia pela assessoria da Ouvidoria, é que 04 Presos se encontram encarcerados no gaiolão, ao relento pegando sol e chuva.  O sr. Daniel Rocha Viana que se encontra nesta situação há 04 dias, e o mais grave que dentre os 04, 03 são menores. Y.L.N de 13 anos, J.P.M.C de 13 anos, C.P.A de 17 anos. Que se encontram nesta situação há mais de 07 dias (...).

Todos os presos reclamam que não está sedo respeitado o horário do banho de Sol, bem como o horário da visita,  pois quando acabam a revista  já se passou muito  tempo e ficam com menos de meia hora de visitas, caso tentem ficar mais tempo já foi chamado a PM que inclusive já usou spray de pimenta para que os presos retornem para as celas. Todos reclamam que a comida é de péssima qualidade, bem como, a água que bebem é da torneira e que a caixa de água, há muito anos não é sequer lavada. Existem esgotos estourados,  banheiros  entupidos  e  muita   sujeira,   telhado   em  péssimas   condições   e alojamento dos agentes também não é diferente(...)”

Na oportunidade, além da delegacia de polícia, foram visitados também o Ministério Público e o Poder Judiciário da Comarca. Conforme consta no relatório, foram feitas reuniões com 03 promotores sobre as situações levantadas, inclusive quanto aos adolescentes que se encontravam no ´Gaiolão´. MP e Judiciário foram cientificados quanto aos fatos.

Em virtude desses, e de muitos outros, a delegacia de Bacabal já chegou a ser interditada pela Justiça. O juiz Roberto de Paula emitiu decisão nesse sentido em 2010, inclusive emitindo alvarás de soltura a presos com direito a liberdade provisória e concedendo prisão domiciliar a outros presos.

O secretário de segurança pública, Aluísio Azevedo, anunciou, logo após o término da sangrenta rebelião do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, concurso público para a contratação de agentes penitenciários, policiais civis, militares e delegados. Decisão acertada. Mas, e quanto aos recursos orçamentários para reestruturação física dos presídios e delegacias?

Portanto, vemos que o Estado, há muito, conhece a realidade das delegacias de polícia e do sistema de segurança como um todo. Porque deixar nosso querido Maranhão, mais uma vez, ser alvo de reportagens tão negativas? A cegueira maranhense persistirá até uma próxima rebelião sangrenta ou alguma outra reportagem nacional de grande impacto?

Um comentário:

  1. Tive a infelicidade de ler no Twitter a idéia - bem disseminada no senso comum (inclusive no eudito) de que esses "monstros" tem mesmo é que vier em tais condições subumanas.

    De um lado, demonstra que nós - os "humanos" - acabamos diante da barbárie também agindo com barbaridade. Já dizia o velho Nietzsche: Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.

    De outro, essa postura, ainda que de forma indireta, é conivente com as rebeliões e os assassinatos - de presos ou agentes penitenciários, visitantes etc. - que ocorrem nelas, pois, na maior parte das vezes, são justamente essas condições precárias que motivam as rebeliões. A respeito, sugiro: GÓES, Eda Maria. "A recusa das grades. Rebeliões nos presídios paulistas: 1982-1986". São Paulo: IBCCRIM, 2009. p. (Monografias, 54)

    No final, quem "paga o pato", além das vítimas e autores do "crime", é a própria sociedade.

    Já me tiraram a comida e o sol, já levei chute e bofetada. Abriram as pernas da minha mulher, arrancaram a roupa de minha mãe. Não tem mais o que tirar de mim, só ódio.”(J. M. E., 31 anos, presidiário no RJ)

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